quarta-feira, agosto 24, 2011

DEMOCRACIA, CIDADANIA E DISCRICIONARIEDADE NA GESTÃO PÚBLICA




Artigo apresentado no I Seminário Interdisciplinar em Direito e Sociologia da UFF - Universidade Federal Fluminense.

Paola de Andrade Porto

Mestranda

Pretende o presente trabalho tecer considerações a respeito da participação cidadã numa sociedade que se apresenta como democrática, abordando aspectos decorrentes do seu exercício ativo nas tomadas de decisões da gestão pública cotidiana, isso porque, observamos comumente o distanciamento dos atos discricionários dos gestores públicos com a vontade da grande parte da sociedade.

A legitimidade dos gestores públicos, outorgada pelo pleito eleitoral não confere aos mandatários uma licença para agir discricionariamente, o que muitas vezes ocasiona dissonância com os interesses da população; assim, o ato discricionário adstrito legalmente ao gestor público pelo critério da conveniência e oportunidade, será apenas revestido pela legitimidade democrática, quando estiver em conformidade com a vontade popular.

A questão da democracia, como componente inerente da própria cidadania, não deve estar restrita somente ao momento do depósito do voto periódico, mas, a todo instante, de forma ativa na participação pela sociedade nas políticas públicas.

Outra questão que também se deve destacar, refere-se à responsabilidade do Estado, como garantidor da ordem pública, que também deverá ser exercida através de atos discricionários dos gestores, promovendo políticas que almejem o bem estar social.

Partindo dessas premissas abordaremos a responsabilidade da administração pública em suas decisões de gestão, quando são tomadas em desacordo com a vontade da população. E ainda, quanto à participação da sociedade civil, discutiremos a importância do seu exercício dentro de um Estado democrático.

Por certo, são questões que estão entrelaçadas dentro de um conceito maior que é o de Estado, sendo este concebido pela sociedade e gerido mediante a Administração Pública. E para discutirmos cada uma dessas afirmações, propomos breve cotejo à sua origem e formação no decorrer da história do Estado Moderno.

Uma das consequências do surgimento do Estado, dentro de uma concepção moderna, diz respeito à avocação para si da prestação de serviços em prol dos interesses da sociedade. O Estado Moderno teve sua origem a partir do século XIII da era cristã (HANSEN, 2009), quando se iniciou a derrocada do sistema feudal na Europa e ainda com o desenvolvimento do comércio em razão dos efeitos das cruzadas. Neste contexto, surgiram, então, as feiras comerciais entre os feudos, que logo foram denominadas de burgos (cidades). Com o desenvolvimento dessas cidades pela emulação do comércio, implicando, desta forma, no aumento de riquezas, não tardou para que os senhores medievais começassem a cobrar tributos resultantes desses negócios.

Por outro lado, essas riquezas produzidas pelos mercantilistas também atraíram meliantes e salteadores, colocando em risco sua segurança. Em contrapartida ao pagamento dos impostos, os negociantes começaram a exigir garantias para o melhor desenvolvimento de suas atividades, tais como segurança, saneamento, estradas etc.

A partir desse contexto começa a surgir o Estado Moderno, como produto da transformação da ordem feudal, onde o poder político e militar que estavam na posse dos senhores feudais foi transferido para as mãos de um monarca absolutista, passando a ser o portador da soberania, o que significava que o poder político centralizado nas instituições governamentais era o responsável pela lei e pela ordem interna.

No despontar da modernização nascia o Brasil, que descoberto por um Estado de organização política monárquica, trazia da Europa ocidental características de um Estado absoluto, onde a vontade do príncipe representava a unidade do reino e a submissão de seus súditos, ditando regras administrativas, jurídicas e militares de Portugal perante esta nova colônia, refletindo a sujeição da população que surgia.

Para adentrarmos na história do desenvolvimento do Estado brasileiro sob o enfoque da participação popular, citamos um trecho da obra de Sergio B. F. Tavolaro o qual menciona a análise de Raymundo Faoro:

Faoro (2001) toma caminho particular no interior dessa perspectiva interpretativa: em vez do “patriarcalismo”, nossa peculiaridade moderna teria suas raízes no Estado patrimonial que se constituiu em Portugal desde os idos de sua formação. Num cenário como aquele, onde as fronteiras entre os domínios públicos e a casa real permaneceram marcadamente porosas, códigos impessoais teriam encontrado pouquíssimo espaço para permear o funcionamento do aparato estatal e para regular as relações entre o Estado e os súditos da Coroa. Ora, durante séculos, o Estado patrimonial português e sua burocracia estamental mantiveram o controle supremo de toda a dinâmica colonial, não só do ponto de vista político-administrativo e militar, mas também do ponto de vista cultural, econômico e até mesmo religioso. (TAVOLARO, 2011)

Das capitanias hereditárias até a independência do Brasil, a participação civil na política dava-se por intermédio de uma ínfima parcela social dominante, composta pela aristocracia brasileira e pela nobreza portuguesa, e com essa realidade, fez-se a independência à revelia do povo, os afastando por completo de sua participação na nova ordem política (PRADO JUNIOR, 2006), fazendo a transferência de poderes da metrópole para o governo do Brasil através das classes dominantes.

Do período da declaração da independência até a proclamação da república a estrutura política tanto no Brasil colônia quanto no Brasil império era fortemente marcada pelo estamento de classes. Tal característica, conforme conceito de Max Weber consistia na divisão da sociedade baseada no status, onde se verificava ainda, a presença de grande desigualdade social, sendo uma minoria que conduzia e escolhia a administração do Estado, com nítida hierarquia e exclusão social das classes economicamente inferiores, como escravos, pequenos agricultores, semilivres e pequenos comerciantes. (HAMEL, 2009)

Em 1989 iniciou-se a Primeira República, com a promulgação da primeira Constituição da República em 1891, inspirada no modelo norte-americano, a qual trouxe a novidade do sistema presidencialista[1] para o Brasil com o voto direto e universal. Apesar disso, muitos eleitores foram colocados de fora desse sistema de participação eleitoral, na realidade, a maioria da população não teve direito ao sufrágio.

Foram considerados eleitores todos os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos, excluídas certas categorias, como os analfabetos, os mendigos, os praças militares. A constituição não fez referência às mulheres, mas considerou-se implicitamente que elas estavam impedidas de votar. (FAUSTO, 2002)

Diversos movimentos populares começaram a se insurgir contra o modelo político instaurando, principalmente por travestir uma roupagem de República Presidencialista, cuja essência é ser um governo do povo, no que em verdade, na prática, era um sistema de “coronelismo” que representava uma relação sociopolítica de clientelismo no campo e nas cidades, devido à desigualdade social existente e na impossibilidade dos cidadãos efetivarem os seus direitos. Fraudes, manipulações, inclusive em razão do voto não ser secreto, resultando uma grande pressão dos chefes políticos que obrigavam os eleitores a votar nos seus candidatos de preferência em troca de favores – no popular, chamado de voto de cabresto.

Podemos atribuir tal situação fática à grande submissão econômica da maioria da população, que dependia fervorosamente desses favores políticos para sua sobrevivência, gerando um círculo vicioso o qual a impedia de se rebelar contra as práticas antidemocráticas desses coronéis detentores do poder econômico, que apostavam em abafar o barulho que os movimentos sociais anti-coronelistas tentavam causar com suas práticas assistencialistas às classes não privilegiadas.

A desconfiança no sistema presidencialista era visível, era preciso emancipar o homem do campo dos coronéis e os homens das cidades das oligarquias, e como salvação dessa política do cabresto, era preciso um Estado interventor, dirigente e autônomo, ou seja, uma força militar, um exército com mãos fortes para controlar as políticas de favorecimentos manipulatórias coronelistas.

Com a República Nova de 1930 vislumbrou-se a um governo de políticas populistas e com a centralização do poder da era Vargas, entretanto, o poder oligárquico e relações clientelistas dos períodos passados, permaneceram enraizadas na sociedade brasileira e com um agravante: agora havia a presença da ditadura de um Exército emergente. De fato, Getúlio promoveu o desenvolvimento capitalista nacional, que começara a percorrer um caminho lento e penoso à industrialização, à custa de alianças entre o Exército e a elite industrial.

Mesmo com a criação do Ministério do Trabalho e Indústria e com a criação de mecanismos que aparentemente favoreciam o trabalhador, pouco restou de liberdade aos cidadãos para se organizarem em busca de seus direitos emancipatórios civis, haja vista a ditadura instalada e o controle extremo do poder central.

Em 1945 com a eleição do Presidente Dutra, o Brasil vivenciou um breve momento de democracia liberal, promulgando a carta constitucional em 1946. Em 1950 Getúlio Vargas retornou ao poder, no entanto, pouco inovou quanto às políticas democráticas instauradas, a participação popular continuava alheia às decisões políticas da Administração Pública, ficando novamente à mercê da classe governamental, sob o manto de um governo populista, mesmo com diversas transformações no campo trabalhista com a edição de leis favorecendo o trabalhador (Consolidação das Leis do Trabalho) e com a permissão de criação de sindicatos – que representava um avanço na questão de reivindicações dos direitos.

De Getúlio Vargas aos presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, o Brasil teve tímidas tentativas de participação popular na Administração Pública, mesmo com a criação de instituições vindas de movimentos sociais, inclusive partidos opositores ao governo, não foi o suficiente para instaurar um modelo de democracia almejada, principalmente a fim de evitar a ocorrência do golpe de 1964 pelo General Castelo Branco, o qual durou vinte anos em sucessivas alternâncias do poderio militar ditatorial e que sufocou por derradeiro toda e qualquer participação popular.

Quanto a questão da centralização do poder estatal, não podemos deixar de mencionar que neste período ocorreram importantes mudanças visando uma reforma administrativa com o objetivo de implementar a descentralização e suprimir mecanismos de controle formais do modelo de administração pública burocrática, a exemplo foi a edição do Decreto-Lei nº 200 em 1967, transferindo inúmeras atividades estatais para autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.

Em 1984 com a chamada diretas já, a eleição de Tancredo Neves – e com sua morte a sucessão para José Sarney –, o Brasil começou a caminhar em direção à promulgação de uma nova Constituição democrática, fato este que se deu em 1988, consagrando os direitos fundamentais do homem como princípios norteadores, encabeçando nesta lista de direitos: a liberdade e a dignidade humana, a cidadania, o pluralismo político, dentre outros direitos de cunho emancipatório jamais garantidos na história do Brasil.

Passada essa breve historiografia brasileira ousamos concluir que a vivência democrática quanto à participação popular teve basicamente sua expressão demonstrada, ainda que debilmente, nos últimos vinte anos de Constituição. Anteriormente a isso, a grande massa da população pouco ou quase nada interferiu nas decisões políticas do governo. Isso porque as sucessivas políticas, seja de um Estado totalitário, seja de um Estado populista, sempre foram no sentido de transferir a responsabilidade de decisão para as mãos de um governante, até porque a sociedade não possuía – por não a deixarem possuir –, estrutura econômica e independência ideológica para se organizar socialmente contra aos mandos dos interesses da classe dominante. A cultura cívica brasileira estava reduzida à fórmula de representatividade eleitoral.

A história política paternalista brasileira, com o Estado superestruturado, pseudo-solucionador das mazelas da sociedade, contribuiu para essa cultura de transferência de responsabilidade, onde a pequena organização civil consistia em apenas instituições denominadas filantrópicas e eram consideradas como um plus, um adicional aos “verdadeiros” prestadores de serviços públicos – os governantes – que estavam autorizados a decidir qual seria o interesse público, falando em nome e pela vontade do povo, já que estavam revestidos da legitimidade da soberania popular na roupagem de uma eleição formalmente instituída.

Quando nos referimos à participação popular nas decisões governamentais não nos referimos apenas às manifestações de protestos contra determinadas políticas calcadas nas bases ideológicas de movimentos ou partidos opositores ao governo da situação, referimo-nos à efetiva participação da sociedade nas decisões políticas, tomando para si a responsabilidade de sua inércia e omissão quando não discutem racionalmente o destino e as consequências de cada ato administrativo, seja qual for a matéria decidida: economia, saúde, educação, segurança, habitação, tributos, etc.

De fato, contamos com ordenamento jurídico que, no desenvolvimento da história brasileira, adquiriu diversos institutos almejando uma maior participação popular nas tomadas de decisões políticas nas três esferas de poder: Legislativo, Executivo e Judiciário. Instrumentos de participação da sociedade foram criados para proporcionar mecanismos de controle prévio e posterior a cada ato político, tais como as audiências públicas para discussão da sociedade com o Poder Legislativo visando à edição ou alteração de lei que trate de matéria urbanística, ou mesmo audiência pública entre a sociedade e o Poder Executivo para discutir a aquisição de um bem ou contratação de um serviço que ultrapasse um determinado valor estipulado na lei de licitações, sob o argumento de que: será que interessa à população gastar todo aquele valor com determinada obra ou compra? Será que realmente a população será beneficiada com tal decisão? E, finalmente o controle posterior, via Poder Judiciário, que pode ser exercido diretamente pela população por meio das ações populares ou por intermédio da sociedade civil, ou Ministério Público via ações civis públicas.

Porém, mesmo com esses avanços normativos ao longo da história, colocando instrumentos de controle, discussão e decisão dos atos políticos à disposição da população, sua efetiva utilização ainda se mostra deficitária, quando muito repetimos: utilizadas como forma de pressão política de pequenos grupos opositores ao governo atual. A grande massa da população permanecia alheia às tomadas de decisão e não se interessavam em participar de qualquer movimento, bastando que fosse verificada a baixa presença dos concernidos em debates nas audiências públicas de grande relevância para uma determinada sociedade.

Derrubava-se um governo, instaurava-se outro, mas na realidade a sociedade brasileira apenas trocou de grilhões no decorrer dos anos, não desenvolvendo a mentalidade de que seus chefes de governo, como resultado da soberania popular, estavam sujeitos à vontade permanente e incondicional da população e que essa vontade popular não poderia resumir-se nas urnas.

Desde outrora o Estado avoca para si uma complexidade de responsabilidade e obrigações perante a sociedade trazendo a ideia de um super tutor ou um verdadeiro salvador da pátria que, numa visão imaginária utópica de divisão de responsabilidade: o cidadão fica com o encargo de pagar tributos e o governo com encargo de decidir onde gastá-lo, como um grande síndico resolvedor de problemas, onde os condôminos não se interessam em participar e discutir os problemas que diretamente irão lhe atingir, em que as reuniões de condomínio sempre têm um quórum abaixo do esperado, mas cultuam a ideia de que o síndico sempre extrapola nos gastos de sua administração, ficando apenas murmurando pelos corredores suas insatisfações de cada gestão.

Por óbvio não pretendemos retirar a responsabilidade do Estado firmada no pacto social de garantir a ordem pública interna e externamente, prestando serviços em prol dos interesses da sociedade, mas ousamos dividir essa responsabilidade com quem é de direito: a própria população. Atos de gestão que interfiram direta ou indiretamente na vida dos cidadãos – ou seja, quase todos – deveriam ser previamente expostos aos seus conhecimentos e discutidos por todos os concernidos, para finalmente ser decididos. Continuar aceitando o ato discricionário do gestor público advindo de um conceito teórico e utilizado na prática como a vontade do administrador permeado entre a conveniência e oportunidade seria no mínimo consentir a violação da participação democrática da sociedade civil.

Permanecendo com esse tipo de aceitação, de que o ato discricionário é legal e legítimo, por certo, somente restará à sociedade continuar a se rebelar posteriormente aos atos já consumados, demonstrando sua total insatisfação, e continuaremos a escutar os âncoras dos telejornais anunciarem notícias de protestos e revoltas com determinadas práticas políticas, e que de fato, na sua maioria, são decisões que ultrapassam a fronteira da discricionariedade, quando afrontam demasiadamente o crivo da razoabilidade e proporcionalidade, tornando-se decisões totalmente arbitrárias.

Recebemos de herança dos “patrícios” um Estado forte, centralizador e autoritário, permanecemos nesse Estado com todas as variantes de modelos e organizações políticas até bem pouco tempo atrás, quiçá ainda encontramos resquícios dele na atual conjuntura, onde o público e o privado permeiam uma linha muito tênue, onde os interesses dos poucos dominantes economicamente se sobrepõem aos interesses da grande massa popular menos favorecida, onde permanecem políticas assistencialistas em troca de votos legitimadores de atos de gestão. Até quando esses atos discricionários poderão ser justificados como legalmente legítimos sob o argumento de uma democracia formalmente instituída no pleito eleitoral? Até quando os cidadãos permanecerão inertes e omissos somente sob a alegação de que as mazelas sempre presentes são de responsabilidade do Estado, apesar de suas revoltas?

Seria preciso para verdadeiramente legitimar os atos de gestão, que estes fossem previamente de conhecimentos de todos e que passassem por uma discussão popular e com base em argumentos racionais para que somente após fossem decididos as medidas cabíveis a cada caso.

Os mais céticos diriam: mas tal proposta seria impossível, visto que inviabilizaria a máquina estatal, imaginem se cada ato de gestão fosse colocado à discussão popular? Emperraria o Estado e nada se faria. Por certo, a proposta é de difícil aceitação e principalmente de difícil aplicação prática, entretanto, também é certo que as decisões tomadas pelos gestores públicos quando não discutidas pela população e quando entram em choque com a opinião e a vontade pública, apesar de fácil aplicação prática detêm uma peculiaridade: são tomadas sobre o mesmo caso/assunto duas, três ou mais vezes. Pois, a cada decisão contrária à opinião pública, a pressão política direciona uma segunda decisão para o mesmo assunto tentando acalmar a opinião pública que esperneia através das vozes midiáticas. Assim, se essa segunda decisão ainda não estiver em conformidade com a vontade dos concernidos, tenta-se decidir de outra maneira, e com esse percorrer de decisões sobre o mesmo assunto, encontramos desgastes políticos devido à má gestão, gastos desnecessários com o Erário, desperdício de pessoal e a desconfiança da população nos atos governamentais. Na realidade encontramos um modelo de pseudo-democracia.

Acreditamos que esse modelo de democracia que está escrito na nossa Constituição Cidadã, vai além um modelo de democracia adstrito ao formalismo baseado numa organização política e numa forma de governo, mas sim, claro, nítido e alvo, como uma democracia abrangedora consagrada constitucionalmente como princípio norteador em todas as esferas de participação da sociedade, almejando enfim a soberania popular. De que adianta a autonomia do gestor público nos atos discricionários se, quando eles vão de encontro com a vontade popular, tenham que ser refeitos para não causar um desgaste político?

É justamente neste contexto que esperamos a participação da sociedade civil, seja participação civil organizada, seja individualmente. Um cidadão passando na rua resolve entrar num determinado prédio governamental e assistir à audiência de licitação de compras de medicamentos, por exemplo, o ato é público, qualquer um do povo pode assistir e o melhor: pode impugnar.

Podemos citar como mais um exemplo de possibilidade de atuação civil prévia o artigo 15, parágrafo 6º, inciso III da Lei nº 8.666 de 1993

Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.” Trata-se uma interferência do cidadão nos atos administrativos.

Ou mesmo com uma atuação civil posterior, conferida pela Lei Complementar nº 131 que alterando a Lei Complementar nº 101 de 2000, instituiu a chamada lei da transparência a qual obriga os órgãos e entidades que recebam recursos públicos a colocarem em tempo real sua contabilidade financeira no sítio eletrônico do órgão, sob pena de responderem por processo de improbidade administrativa caso não o coloquem ou ainda, se suas contas forem julgadas suspeitas por qualquer cidadão, partido político, associação, que serão parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas ou ao Ministério Público visando à investigação de tais alegações.

A cidadania pode ser exercida de diversas maneiras, atualmente contamos com muitos instrumentos jurídicos que facilitam o seu exercício, permitindo a expressão da opinião pública, o direito de greve, de reunião, manifestação, de associação civil e, principalmente, quando nos referimos ao controle dos atos públicos. Mas de fato, ainda estamos engatinhando lentamente para a proposta de democracia participativa ancorada na teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. (2003)

Atos discricionários quando postos em discussão com argumentos racionais com os concernidos, certamente evitariam que essas decisões fossem rediscutidas posteriormente em outras esferas, tal como numa provável ação de improbidade ou uma ação popular, ou mesmo por pressão política da opinião pública. A discussão da matéria com a sociedade e a tomada da decisão em conjunto legitimaria os atos dos administradores públicos com base nos verdadeiros preceitos de soberania popular.

É por essa razão que não acreditamos que a responsabilidade e obrigação de resolução de todas as mazelas sejam exclusivas do Estado, acreditamos que o Estado se confunde com a sociedade, eles se entrelaçam, são o corpo e alma de um só fundamento: a soberania popular. O Estado está revestido de legitimidade para agir, desde que o faça em consonância com a vontade da sociedade, porém nada impede que a sociedade também faça sua parte, interferindo, intercedendo, questionando, pesquisando o que está acontecendo nos bastidores do governo, quais serão as próximas decisões políticas, o porquê de tal e qual decisão, qual ou quais benefícios serão trazidos para população com determinado ato discricionário?

Compreendemos que nossa experiência histórica do exercício da cidadania constantemente abafada por guerras, torturas e mortes e ainda com a presença marcante de um Estado protecionista e paternalista não contribuíram para que tenhamos uma mentalidade de divisão de responsabilidade, entretanto, sugerimos uma proposta de cidadania plena onde cada cidadão seja responsável e esteja obrigado a responder pelos atos do governo mediante sua participação nas discussões para as decisões dos atos de gestão pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo. Edusp. 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre a facticidade e validade. Biblioteca tempo universitário. Editora Tempo brasileiro. Rio de Janeiro. 2003.

HAMEL, Marcio Renan. A política deliberativa em Habermas. Uma perspectiva para o desenvolvimento da democracia brasileira. Editora Méritos. Passo fundo. 2009.

HANSEN, Gilvan Luiz. SILVA, Maria Leonor Veiga da. Curso de Capacitação em Gestão Pública. Módulo IV: Gestão em administração pública. Niterói: UFF. Neami, 2009.

Lei Complementar Federal nº. 131 de 27 de maio de 2009.

Lei Federal nº. 8.666 de 21 de julho de 1993.

PRADO JUNIOR, caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 2006.

TAVOLARO, Sergio B. F. EXISTE UMA MODERNIDADE BRASILEIRA? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v20n59/a01v2059.pdf (acessado dia 31/07/2011)



[1] Apesar de inspirada no modelo estadunidense, muitos princípios democráticos foram suprimidos na edição constitucional brasileira.