domingo, setembro 04, 2011

Figuras de Pensamento

As figuras de pensamento revelam intenções do emissor no nivel extratextual.

ANTÍTESE OU CONTRASTE

É o emprego de palavras ou expressões contrastantes, geralmente na mesma fase,

Toda guerra finaliza por onde devia ter começado:a paz.

PARADOXO

É uma afirmação ou opinião que à primeira vista parece ser contraditória, mas na realidade expressa uma verdade possível.

“Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que sói e não se sente;”

COMPARAÇÃO

Trata-se da colocação de dois sentidos em paralelo no qual estão presentes a unidade linguisticas comparante e a comparada; é feita com o uso de conjunções ou locuções conjuntivas.

Sou Hagar, o horrível! Ágil como uma cabra!

HIPERBOLE

É o exagero na afirmação.

Repetir um milhão de vez.

Morrer de estudar.

LITOTES

É o oposto da hipérbole, ou seja, é a afirmação branda por meio da negação do contrário.

APÓSTROFE

É equivalente ao vocativo na análise sintática.pe a interpretação em meio ao enunciado.

Upa! Cá estamos. Custou-me, não, leitor amigo?

GRADAÇÃO OU CLÍMAX

É a apresentação de idéias em progressão crescente (clímax) ou decrescente (anticlímax).

Um coração chegando de desejos

Latejando, batendo, retrugindo...”

“Ó não guardes, que a madura idade

Te converta essa flor, essa beleza,

Em terra, em cinzas, em pó, em sombra, em nada.”

EUFEMISMO

É o emprego de palavras ou expressões agradáveis, em substituição às que têm sentido grosseiros ou desagradável.

Toalete (por mictorio)// Tumor maligno (por cance)// Falar a verdade (por mentir)

IRONIA

É sugerir pela entoação e contexto, o contrário do que as palavras ou frases exprimem, por intenção sarcastica.

Que menina linda! ( quando se trata na verdade, de um monstro )”

SINESTESIA

Refere-se às sensações que percebemos por meio do cruzamento de diferentes órgâos dos sentidos.

Contra o verde lustroso e macio da relva, gritam os cravos vermelhos”

PERSONIFICAÇÃO OU PROSOPOPEIA

É a atribuição de qualidades e sentimentos humanos a seres irracionais e inanimados.

As arvores são imbecis: se desoen justamente quando começa o inverno.

ANTONOMASIA OU PERIFRASE

É a substituição de um nome por outro ou por uma expressão que facilmente o indentifique.

O mestre = Jesus Cristo

O rei das selavas = O Leão

FIGURAS DE PALAVRAS

As figuras originam-se da alteração semântica das unidades linguisticas.

METÁFORA

Emprega um termo em lugar de outro,com base em uma relaçao de semelhança entre os elementos que esses termos designam. Quase sempre a metáfora é uma comparação abreviada.

O poema é umapedra no abismo”

SÍMILE

Compara dois elementos de universos diferentes. O símile também é chamado de comparação metafórica.

...a pupila se dilata e transborda como tinta pretaderrando no olho inteiro”.

CATACRESE

Consiste em transferir uma palavra sentido própria de outra, constituindo formas já incorporadas aos usos da língua.

Ele embarcou no avião. (embarcar = barco)

METONÍMIA OU SINÉDOQUE

É a substituição de um nome por outro, em virtude de haver entre eles algum relacionamento.

Tal substituição se realiza principalmente destes modos:

· O autor da obra: Ler Jorge Amado

· O possuidor (P) pelo possuído (p), ou vice-versas: Ir ao barbeiro. (barbeiro, P, está por barbearia, p). Na guerra não descansam as armas.

· O lugar pela coisa ou pelo produto: Ir ao correio. (correio está por onde funciona o serviço de correio.)

· A causa pelo efeito: Viver do trabalho. (Trabalho está por alimento.)

· O instrumento pela causa ativa: Ser uma pena brilhante. (Pena está por escritor).

· A coisa pela representação: Ser defensor implacável do lar. (Lar está por familia)

Figuras da Sintaxe

As figuras de sintaxe fundamentam-se na reordenação sintática da estruturação da oração.

ELIPSE:

Ocorre quando há omissão, espontanea ou voluntaria, de termos que se podem subendender facilmente pelo contexto:

Na laranja e couve

picada –as cores brasileiras

de feijoada [...]

Nesse caso o poema omitiu o verbo. Pelo contexto, podemos subendender verbos como estão, observamos, e achaam-se, etc.

ZEUGMA

É a omissão de um termo expresso anteriormente em outra oração.

És blea –eu moço; tens amor – eu medo!

Se não houvesse a omissão intencional, teríamos:”eu sou moço”: eu tenho medo!” observe que os verbos ser e ter ja tinham sido expressos nas orações anteriores.

INVERSÃO

Ocorre quando se dá inversão de ordem normal e direta das palavras na oração, com finalidade expressiva:

Diz cristo que saiu o pregador evangélico a semear a palavra divina.

Na ordem direta teríamos: Cristo diz que o pregador envangélico saiu a semear a palavra divina.

Alguns autores distinguem os tipos de inversão:

· HIBÉRBATO:, que consiste no deslocamento de termos ou de orações no período:

“Dinheiro nunca tenho”.

· ANÁSTROFE:, que consiste na anteposição do determinante (preposição+substantivo) ao determinado: “De tudo ao meu amor serei]] antes (..)

Na ordem direta, teríamos: “serei atento ao meu amor antes de tudo.”

PLEONASMO

É a repetição, por meio de palavras diferentes, de uma noção ja apresentada, com oobjetivo de enfatizar uma palavra ou expressão.

Ó mar salgado, quando do teu sal]] são lágrimas de Portugal!

POLISSÍNDETO

É o uso repetido de conjunções coordenativas:

No entanto a feira burburinha.]] Vão chegando as burguesinhas pobres, ]] E as criadas das burguesinhas ricas]] E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Esse recurso confere ritmo, fluidez e enfase a termos da oração ou às ações verbais. Nesse caso, a ênfase recai sobre o sujeito da forma verbal vão chegando.

ASSÍNDETO

Repetição de palavra(s) que finaliza(m) frase ou verso no começoda frase ou verso seguinte.

Todo pranto é um comentário. Um comentário que amargamente cordena os motivos dados.

ANÁFORA

Consiste na repetição de palavras, geralmente no início de versos ou orações:

Se voce gritasse,

Se você gemesse,

Se você tocasse

a valsa vienense,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

vocé é duro, José!

ANACOLUTO

Ocorre quando na construção da frase há uma mudança repentina que deixa um elemento sem função sintática.

Eu, que cair não pude neste engano,

(Que é grande dos amantes a cegueira),

Encheram-me com grandes abundanças,

O peito de desejos e esperanças.

Observe que o pronome “eu”, que se anunciava como sujeito, ficou isolado no enunciado, sem função sintática. Além disso, não está ligado sintaticamente à forma verbal “Encheram-me”.

SILEPSE

É a concordancia que faz não com a forma gramátical das palavras, mas com seu sentido, com a ideia que elas expressam. Há tres tipos de silepse:

· SILEPSE DE NUMERO: Ocorre principalmente com os termos coletivos:

A turma não conseguiu arrecadar o dinheiro necessário necessário para uma viagem de formatura; resolveram, então, fazer apenas um coquetel.

Observe que os ubstantivo turma é coletivo, e portanto, o verbo resolver deveria estar na terceira pessoa do singular (A turma resolveu.). Nesse caso, entretanto, por estar distanciado do sujeito, o verbo resolver concordou em 3ª. Pessoa do plural com a ideia de turma (mais de um).

· SILEPSE DE GÊNERO: ocorre principalmente com as expressões de tratamento Vossa Majestade, Vossa Excelência,Vossa Senhoria, etc, que têm a forma gramatical femenina, e são aplicadas a pessoas do sexo masculino.

Senhor Presidente,Vossa Excelencia não está preocupado com as recentes greves no setor de alimentos?

Observe que o adjetivo preocupado está no masculino, concordando com a idéia de masculino (refere-se ao presidente), embora Vossa Excelencia seja forma femenina.

· SILEPSE DE PESSOA: ocorre quando a pessoa que fala ou escreve se inclui num sujeito expresso na terceira pessoa, fazendo o verbo concordar na 1ª pessoa do plural:

Os brasileiros precisam defender nossas matas da depredação.

Observe que, sendo o sujeito “brasileiros”, o verbo “ser” deveria estar na 3ª pessoa do plural: precisam.O verbo na 1ª do plural indica que aquele que fala inclui entre “os brasileiros”.


quarta-feira, agosto 24, 2011

DEMOCRACIA, CIDADANIA E DISCRICIONARIEDADE NA GESTÃO PÚBLICA




Artigo apresentado no I Seminário Interdisciplinar em Direito e Sociologia da UFF - Universidade Federal Fluminense.

Paola de Andrade Porto

Mestranda

Pretende o presente trabalho tecer considerações a respeito da participação cidadã numa sociedade que se apresenta como democrática, abordando aspectos decorrentes do seu exercício ativo nas tomadas de decisões da gestão pública cotidiana, isso porque, observamos comumente o distanciamento dos atos discricionários dos gestores públicos com a vontade da grande parte da sociedade.

A legitimidade dos gestores públicos, outorgada pelo pleito eleitoral não confere aos mandatários uma licença para agir discricionariamente, o que muitas vezes ocasiona dissonância com os interesses da população; assim, o ato discricionário adstrito legalmente ao gestor público pelo critério da conveniência e oportunidade, será apenas revestido pela legitimidade democrática, quando estiver em conformidade com a vontade popular.

A questão da democracia, como componente inerente da própria cidadania, não deve estar restrita somente ao momento do depósito do voto periódico, mas, a todo instante, de forma ativa na participação pela sociedade nas políticas públicas.

Outra questão que também se deve destacar, refere-se à responsabilidade do Estado, como garantidor da ordem pública, que também deverá ser exercida através de atos discricionários dos gestores, promovendo políticas que almejem o bem estar social.

Partindo dessas premissas abordaremos a responsabilidade da administração pública em suas decisões de gestão, quando são tomadas em desacordo com a vontade da população. E ainda, quanto à participação da sociedade civil, discutiremos a importância do seu exercício dentro de um Estado democrático.

Por certo, são questões que estão entrelaçadas dentro de um conceito maior que é o de Estado, sendo este concebido pela sociedade e gerido mediante a Administração Pública. E para discutirmos cada uma dessas afirmações, propomos breve cotejo à sua origem e formação no decorrer da história do Estado Moderno.

Uma das consequências do surgimento do Estado, dentro de uma concepção moderna, diz respeito à avocação para si da prestação de serviços em prol dos interesses da sociedade. O Estado Moderno teve sua origem a partir do século XIII da era cristã (HANSEN, 2009), quando se iniciou a derrocada do sistema feudal na Europa e ainda com o desenvolvimento do comércio em razão dos efeitos das cruzadas. Neste contexto, surgiram, então, as feiras comerciais entre os feudos, que logo foram denominadas de burgos (cidades). Com o desenvolvimento dessas cidades pela emulação do comércio, implicando, desta forma, no aumento de riquezas, não tardou para que os senhores medievais começassem a cobrar tributos resultantes desses negócios.

Por outro lado, essas riquezas produzidas pelos mercantilistas também atraíram meliantes e salteadores, colocando em risco sua segurança. Em contrapartida ao pagamento dos impostos, os negociantes começaram a exigir garantias para o melhor desenvolvimento de suas atividades, tais como segurança, saneamento, estradas etc.

A partir desse contexto começa a surgir o Estado Moderno, como produto da transformação da ordem feudal, onde o poder político e militar que estavam na posse dos senhores feudais foi transferido para as mãos de um monarca absolutista, passando a ser o portador da soberania, o que significava que o poder político centralizado nas instituições governamentais era o responsável pela lei e pela ordem interna.

No despontar da modernização nascia o Brasil, que descoberto por um Estado de organização política monárquica, trazia da Europa ocidental características de um Estado absoluto, onde a vontade do príncipe representava a unidade do reino e a submissão de seus súditos, ditando regras administrativas, jurídicas e militares de Portugal perante esta nova colônia, refletindo a sujeição da população que surgia.

Para adentrarmos na história do desenvolvimento do Estado brasileiro sob o enfoque da participação popular, citamos um trecho da obra de Sergio B. F. Tavolaro o qual menciona a análise de Raymundo Faoro:

Faoro (2001) toma caminho particular no interior dessa perspectiva interpretativa: em vez do “patriarcalismo”, nossa peculiaridade moderna teria suas raízes no Estado patrimonial que se constituiu em Portugal desde os idos de sua formação. Num cenário como aquele, onde as fronteiras entre os domínios públicos e a casa real permaneceram marcadamente porosas, códigos impessoais teriam encontrado pouquíssimo espaço para permear o funcionamento do aparato estatal e para regular as relações entre o Estado e os súditos da Coroa. Ora, durante séculos, o Estado patrimonial português e sua burocracia estamental mantiveram o controle supremo de toda a dinâmica colonial, não só do ponto de vista político-administrativo e militar, mas também do ponto de vista cultural, econômico e até mesmo religioso. (TAVOLARO, 2011)

Das capitanias hereditárias até a independência do Brasil, a participação civil na política dava-se por intermédio de uma ínfima parcela social dominante, composta pela aristocracia brasileira e pela nobreza portuguesa, e com essa realidade, fez-se a independência à revelia do povo, os afastando por completo de sua participação na nova ordem política (PRADO JUNIOR, 2006), fazendo a transferência de poderes da metrópole para o governo do Brasil através das classes dominantes.

Do período da declaração da independência até a proclamação da república a estrutura política tanto no Brasil colônia quanto no Brasil império era fortemente marcada pelo estamento de classes. Tal característica, conforme conceito de Max Weber consistia na divisão da sociedade baseada no status, onde se verificava ainda, a presença de grande desigualdade social, sendo uma minoria que conduzia e escolhia a administração do Estado, com nítida hierarquia e exclusão social das classes economicamente inferiores, como escravos, pequenos agricultores, semilivres e pequenos comerciantes. (HAMEL, 2009)

Em 1989 iniciou-se a Primeira República, com a promulgação da primeira Constituição da República em 1891, inspirada no modelo norte-americano, a qual trouxe a novidade do sistema presidencialista[1] para o Brasil com o voto direto e universal. Apesar disso, muitos eleitores foram colocados de fora desse sistema de participação eleitoral, na realidade, a maioria da população não teve direito ao sufrágio.

Foram considerados eleitores todos os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos, excluídas certas categorias, como os analfabetos, os mendigos, os praças militares. A constituição não fez referência às mulheres, mas considerou-se implicitamente que elas estavam impedidas de votar. (FAUSTO, 2002)

Diversos movimentos populares começaram a se insurgir contra o modelo político instaurando, principalmente por travestir uma roupagem de República Presidencialista, cuja essência é ser um governo do povo, no que em verdade, na prática, era um sistema de “coronelismo” que representava uma relação sociopolítica de clientelismo no campo e nas cidades, devido à desigualdade social existente e na impossibilidade dos cidadãos efetivarem os seus direitos. Fraudes, manipulações, inclusive em razão do voto não ser secreto, resultando uma grande pressão dos chefes políticos que obrigavam os eleitores a votar nos seus candidatos de preferência em troca de favores – no popular, chamado de voto de cabresto.

Podemos atribuir tal situação fática à grande submissão econômica da maioria da população, que dependia fervorosamente desses favores políticos para sua sobrevivência, gerando um círculo vicioso o qual a impedia de se rebelar contra as práticas antidemocráticas desses coronéis detentores do poder econômico, que apostavam em abafar o barulho que os movimentos sociais anti-coronelistas tentavam causar com suas práticas assistencialistas às classes não privilegiadas.

A desconfiança no sistema presidencialista era visível, era preciso emancipar o homem do campo dos coronéis e os homens das cidades das oligarquias, e como salvação dessa política do cabresto, era preciso um Estado interventor, dirigente e autônomo, ou seja, uma força militar, um exército com mãos fortes para controlar as políticas de favorecimentos manipulatórias coronelistas.

Com a República Nova de 1930 vislumbrou-se a um governo de políticas populistas e com a centralização do poder da era Vargas, entretanto, o poder oligárquico e relações clientelistas dos períodos passados, permaneceram enraizadas na sociedade brasileira e com um agravante: agora havia a presença da ditadura de um Exército emergente. De fato, Getúlio promoveu o desenvolvimento capitalista nacional, que começara a percorrer um caminho lento e penoso à industrialização, à custa de alianças entre o Exército e a elite industrial.

Mesmo com a criação do Ministério do Trabalho e Indústria e com a criação de mecanismos que aparentemente favoreciam o trabalhador, pouco restou de liberdade aos cidadãos para se organizarem em busca de seus direitos emancipatórios civis, haja vista a ditadura instalada e o controle extremo do poder central.

Em 1945 com a eleição do Presidente Dutra, o Brasil vivenciou um breve momento de democracia liberal, promulgando a carta constitucional em 1946. Em 1950 Getúlio Vargas retornou ao poder, no entanto, pouco inovou quanto às políticas democráticas instauradas, a participação popular continuava alheia às decisões políticas da Administração Pública, ficando novamente à mercê da classe governamental, sob o manto de um governo populista, mesmo com diversas transformações no campo trabalhista com a edição de leis favorecendo o trabalhador (Consolidação das Leis do Trabalho) e com a permissão de criação de sindicatos – que representava um avanço na questão de reivindicações dos direitos.

De Getúlio Vargas aos presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, o Brasil teve tímidas tentativas de participação popular na Administração Pública, mesmo com a criação de instituições vindas de movimentos sociais, inclusive partidos opositores ao governo, não foi o suficiente para instaurar um modelo de democracia almejada, principalmente a fim de evitar a ocorrência do golpe de 1964 pelo General Castelo Branco, o qual durou vinte anos em sucessivas alternâncias do poderio militar ditatorial e que sufocou por derradeiro toda e qualquer participação popular.

Quanto a questão da centralização do poder estatal, não podemos deixar de mencionar que neste período ocorreram importantes mudanças visando uma reforma administrativa com o objetivo de implementar a descentralização e suprimir mecanismos de controle formais do modelo de administração pública burocrática, a exemplo foi a edição do Decreto-Lei nº 200 em 1967, transferindo inúmeras atividades estatais para autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.

Em 1984 com a chamada diretas já, a eleição de Tancredo Neves – e com sua morte a sucessão para José Sarney –, o Brasil começou a caminhar em direção à promulgação de uma nova Constituição democrática, fato este que se deu em 1988, consagrando os direitos fundamentais do homem como princípios norteadores, encabeçando nesta lista de direitos: a liberdade e a dignidade humana, a cidadania, o pluralismo político, dentre outros direitos de cunho emancipatório jamais garantidos na história do Brasil.

Passada essa breve historiografia brasileira ousamos concluir que a vivência democrática quanto à participação popular teve basicamente sua expressão demonstrada, ainda que debilmente, nos últimos vinte anos de Constituição. Anteriormente a isso, a grande massa da população pouco ou quase nada interferiu nas decisões políticas do governo. Isso porque as sucessivas políticas, seja de um Estado totalitário, seja de um Estado populista, sempre foram no sentido de transferir a responsabilidade de decisão para as mãos de um governante, até porque a sociedade não possuía – por não a deixarem possuir –, estrutura econômica e independência ideológica para se organizar socialmente contra aos mandos dos interesses da classe dominante. A cultura cívica brasileira estava reduzida à fórmula de representatividade eleitoral.

A história política paternalista brasileira, com o Estado superestruturado, pseudo-solucionador das mazelas da sociedade, contribuiu para essa cultura de transferência de responsabilidade, onde a pequena organização civil consistia em apenas instituições denominadas filantrópicas e eram consideradas como um plus, um adicional aos “verdadeiros” prestadores de serviços públicos – os governantes – que estavam autorizados a decidir qual seria o interesse público, falando em nome e pela vontade do povo, já que estavam revestidos da legitimidade da soberania popular na roupagem de uma eleição formalmente instituída.

Quando nos referimos à participação popular nas decisões governamentais não nos referimos apenas às manifestações de protestos contra determinadas políticas calcadas nas bases ideológicas de movimentos ou partidos opositores ao governo da situação, referimo-nos à efetiva participação da sociedade nas decisões políticas, tomando para si a responsabilidade de sua inércia e omissão quando não discutem racionalmente o destino e as consequências de cada ato administrativo, seja qual for a matéria decidida: economia, saúde, educação, segurança, habitação, tributos, etc.

De fato, contamos com ordenamento jurídico que, no desenvolvimento da história brasileira, adquiriu diversos institutos almejando uma maior participação popular nas tomadas de decisões políticas nas três esferas de poder: Legislativo, Executivo e Judiciário. Instrumentos de participação da sociedade foram criados para proporcionar mecanismos de controle prévio e posterior a cada ato político, tais como as audiências públicas para discussão da sociedade com o Poder Legislativo visando à edição ou alteração de lei que trate de matéria urbanística, ou mesmo audiência pública entre a sociedade e o Poder Executivo para discutir a aquisição de um bem ou contratação de um serviço que ultrapasse um determinado valor estipulado na lei de licitações, sob o argumento de que: será que interessa à população gastar todo aquele valor com determinada obra ou compra? Será que realmente a população será beneficiada com tal decisão? E, finalmente o controle posterior, via Poder Judiciário, que pode ser exercido diretamente pela população por meio das ações populares ou por intermédio da sociedade civil, ou Ministério Público via ações civis públicas.

Porém, mesmo com esses avanços normativos ao longo da história, colocando instrumentos de controle, discussão e decisão dos atos políticos à disposição da população, sua efetiva utilização ainda se mostra deficitária, quando muito repetimos: utilizadas como forma de pressão política de pequenos grupos opositores ao governo atual. A grande massa da população permanecia alheia às tomadas de decisão e não se interessavam em participar de qualquer movimento, bastando que fosse verificada a baixa presença dos concernidos em debates nas audiências públicas de grande relevância para uma determinada sociedade.

Derrubava-se um governo, instaurava-se outro, mas na realidade a sociedade brasileira apenas trocou de grilhões no decorrer dos anos, não desenvolvendo a mentalidade de que seus chefes de governo, como resultado da soberania popular, estavam sujeitos à vontade permanente e incondicional da população e que essa vontade popular não poderia resumir-se nas urnas.

Desde outrora o Estado avoca para si uma complexidade de responsabilidade e obrigações perante a sociedade trazendo a ideia de um super tutor ou um verdadeiro salvador da pátria que, numa visão imaginária utópica de divisão de responsabilidade: o cidadão fica com o encargo de pagar tributos e o governo com encargo de decidir onde gastá-lo, como um grande síndico resolvedor de problemas, onde os condôminos não se interessam em participar e discutir os problemas que diretamente irão lhe atingir, em que as reuniões de condomínio sempre têm um quórum abaixo do esperado, mas cultuam a ideia de que o síndico sempre extrapola nos gastos de sua administração, ficando apenas murmurando pelos corredores suas insatisfações de cada gestão.

Por óbvio não pretendemos retirar a responsabilidade do Estado firmada no pacto social de garantir a ordem pública interna e externamente, prestando serviços em prol dos interesses da sociedade, mas ousamos dividir essa responsabilidade com quem é de direito: a própria população. Atos de gestão que interfiram direta ou indiretamente na vida dos cidadãos – ou seja, quase todos – deveriam ser previamente expostos aos seus conhecimentos e discutidos por todos os concernidos, para finalmente ser decididos. Continuar aceitando o ato discricionário do gestor público advindo de um conceito teórico e utilizado na prática como a vontade do administrador permeado entre a conveniência e oportunidade seria no mínimo consentir a violação da participação democrática da sociedade civil.

Permanecendo com esse tipo de aceitação, de que o ato discricionário é legal e legítimo, por certo, somente restará à sociedade continuar a se rebelar posteriormente aos atos já consumados, demonstrando sua total insatisfação, e continuaremos a escutar os âncoras dos telejornais anunciarem notícias de protestos e revoltas com determinadas práticas políticas, e que de fato, na sua maioria, são decisões que ultrapassam a fronteira da discricionariedade, quando afrontam demasiadamente o crivo da razoabilidade e proporcionalidade, tornando-se decisões totalmente arbitrárias.

Recebemos de herança dos “patrícios” um Estado forte, centralizador e autoritário, permanecemos nesse Estado com todas as variantes de modelos e organizações políticas até bem pouco tempo atrás, quiçá ainda encontramos resquícios dele na atual conjuntura, onde o público e o privado permeiam uma linha muito tênue, onde os interesses dos poucos dominantes economicamente se sobrepõem aos interesses da grande massa popular menos favorecida, onde permanecem políticas assistencialistas em troca de votos legitimadores de atos de gestão. Até quando esses atos discricionários poderão ser justificados como legalmente legítimos sob o argumento de uma democracia formalmente instituída no pleito eleitoral? Até quando os cidadãos permanecerão inertes e omissos somente sob a alegação de que as mazelas sempre presentes são de responsabilidade do Estado, apesar de suas revoltas?

Seria preciso para verdadeiramente legitimar os atos de gestão, que estes fossem previamente de conhecimentos de todos e que passassem por uma discussão popular e com base em argumentos racionais para que somente após fossem decididos as medidas cabíveis a cada caso.

Os mais céticos diriam: mas tal proposta seria impossível, visto que inviabilizaria a máquina estatal, imaginem se cada ato de gestão fosse colocado à discussão popular? Emperraria o Estado e nada se faria. Por certo, a proposta é de difícil aceitação e principalmente de difícil aplicação prática, entretanto, também é certo que as decisões tomadas pelos gestores públicos quando não discutidas pela população e quando entram em choque com a opinião e a vontade pública, apesar de fácil aplicação prática detêm uma peculiaridade: são tomadas sobre o mesmo caso/assunto duas, três ou mais vezes. Pois, a cada decisão contrária à opinião pública, a pressão política direciona uma segunda decisão para o mesmo assunto tentando acalmar a opinião pública que esperneia através das vozes midiáticas. Assim, se essa segunda decisão ainda não estiver em conformidade com a vontade dos concernidos, tenta-se decidir de outra maneira, e com esse percorrer de decisões sobre o mesmo assunto, encontramos desgastes políticos devido à má gestão, gastos desnecessários com o Erário, desperdício de pessoal e a desconfiança da população nos atos governamentais. Na realidade encontramos um modelo de pseudo-democracia.

Acreditamos que esse modelo de democracia que está escrito na nossa Constituição Cidadã, vai além um modelo de democracia adstrito ao formalismo baseado numa organização política e numa forma de governo, mas sim, claro, nítido e alvo, como uma democracia abrangedora consagrada constitucionalmente como princípio norteador em todas as esferas de participação da sociedade, almejando enfim a soberania popular. De que adianta a autonomia do gestor público nos atos discricionários se, quando eles vão de encontro com a vontade popular, tenham que ser refeitos para não causar um desgaste político?

É justamente neste contexto que esperamos a participação da sociedade civil, seja participação civil organizada, seja individualmente. Um cidadão passando na rua resolve entrar num determinado prédio governamental e assistir à audiência de licitação de compras de medicamentos, por exemplo, o ato é público, qualquer um do povo pode assistir e o melhor: pode impugnar.

Podemos citar como mais um exemplo de possibilidade de atuação civil prévia o artigo 15, parágrafo 6º, inciso III da Lei nº 8.666 de 1993

Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.” Trata-se uma interferência do cidadão nos atos administrativos.

Ou mesmo com uma atuação civil posterior, conferida pela Lei Complementar nº 131 que alterando a Lei Complementar nº 101 de 2000, instituiu a chamada lei da transparência a qual obriga os órgãos e entidades que recebam recursos públicos a colocarem em tempo real sua contabilidade financeira no sítio eletrônico do órgão, sob pena de responderem por processo de improbidade administrativa caso não o coloquem ou ainda, se suas contas forem julgadas suspeitas por qualquer cidadão, partido político, associação, que serão parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas ou ao Ministério Público visando à investigação de tais alegações.

A cidadania pode ser exercida de diversas maneiras, atualmente contamos com muitos instrumentos jurídicos que facilitam o seu exercício, permitindo a expressão da opinião pública, o direito de greve, de reunião, manifestação, de associação civil e, principalmente, quando nos referimos ao controle dos atos públicos. Mas de fato, ainda estamos engatinhando lentamente para a proposta de democracia participativa ancorada na teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. (2003)

Atos discricionários quando postos em discussão com argumentos racionais com os concernidos, certamente evitariam que essas decisões fossem rediscutidas posteriormente em outras esferas, tal como numa provável ação de improbidade ou uma ação popular, ou mesmo por pressão política da opinião pública. A discussão da matéria com a sociedade e a tomada da decisão em conjunto legitimaria os atos dos administradores públicos com base nos verdadeiros preceitos de soberania popular.

É por essa razão que não acreditamos que a responsabilidade e obrigação de resolução de todas as mazelas sejam exclusivas do Estado, acreditamos que o Estado se confunde com a sociedade, eles se entrelaçam, são o corpo e alma de um só fundamento: a soberania popular. O Estado está revestido de legitimidade para agir, desde que o faça em consonância com a vontade da sociedade, porém nada impede que a sociedade também faça sua parte, interferindo, intercedendo, questionando, pesquisando o que está acontecendo nos bastidores do governo, quais serão as próximas decisões políticas, o porquê de tal e qual decisão, qual ou quais benefícios serão trazidos para população com determinado ato discricionário?

Compreendemos que nossa experiência histórica do exercício da cidadania constantemente abafada por guerras, torturas e mortes e ainda com a presença marcante de um Estado protecionista e paternalista não contribuíram para que tenhamos uma mentalidade de divisão de responsabilidade, entretanto, sugerimos uma proposta de cidadania plena onde cada cidadão seja responsável e esteja obrigado a responder pelos atos do governo mediante sua participação nas discussões para as decisões dos atos de gestão pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo. Edusp. 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre a facticidade e validade. Biblioteca tempo universitário. Editora Tempo brasileiro. Rio de Janeiro. 2003.

HAMEL, Marcio Renan. A política deliberativa em Habermas. Uma perspectiva para o desenvolvimento da democracia brasileira. Editora Méritos. Passo fundo. 2009.

HANSEN, Gilvan Luiz. SILVA, Maria Leonor Veiga da. Curso de Capacitação em Gestão Pública. Módulo IV: Gestão em administração pública. Niterói: UFF. Neami, 2009.

Lei Complementar Federal nº. 131 de 27 de maio de 2009.

Lei Federal nº. 8.666 de 21 de julho de 1993.

PRADO JUNIOR, caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 2006.

TAVOLARO, Sergio B. F. EXISTE UMA MODERNIDADE BRASILEIRA? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v20n59/a01v2059.pdf (acessado dia 31/07/2011)



[1] Apesar de inspirada no modelo estadunidense, muitos princípios democráticos foram suprimidos na edição constitucional brasileira.

domingo, julho 03, 2011

A Preparação do Ator


PPGSD – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito

Disciplina: Metodologia Científica

Profs. Maurício Vieira Martins e Wilson Madeira Filho – 2011/1


STANISLAVSKI, Constantin.
A preparação do Ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. 26ª edição. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2009.

Paola de Andrade Porto

O enredo central do livro trata da estória de um curso de teatro, no qual diretores lecionam aos alunos a arte de atuar. O cerne da questão utilizada pelos personagens principais é a criação de um método de atuação. Com o decorrer da narração o autor nos remete a cada capítulo a um ensinamento metodológico que irá auxiliar aos alunos na preparação do ator.

Seu método, apesar de ter sido criado para as artes cênicas, também pode ser utilizado em outras áreas de profissão e ciência, assim como o ator Charlie Chaplin[1] disse sobre Stanislavsky: O livro de Stanislavski, "A preparação do ator", pode ajudar todas as pessoas, mesmo longe da arte dramática."

E justamente neste diapasão que tentarei fazer uma ligação da metodologia utilizada pelo autor para os alunos na preparação do ator com a metodologia utilizada por alunos na elaboração de um trabalho, dissertação ou tese, retirando fragmentos do livro que julguei como importantes lições e que podem ser utilizadas pela ciência acadêmica.

No capítulo VII, o autor irá tratar das unidades e objetivos.

O personagem do diretor no Capítulo VII ensina aos alunos através de um exemplo prático num almoço que, assim como ninguém consegue comer uma grande ave inteira de uma só vez, mesmo que a corte em alguns pedaços menores, seria necessário que cortasse em pedaços menores ainda para que o homem não se engasgue, o ator no momento de sua preparação deverá dividir o ato em pequenos pedaços que ele os denomina de unidades, para que ele não se perca.

Porém o diretor ressalta que o ator deverá dividir o ato em unidades que realmente importem, de modo que ele não se desnorteie do objetivo principal do ato.

“Assim também deve guiar-se o ator, não por uma infinidade de detalhes, mas por aquelas unidades importantes que, como sinais, demarcam o canal para ele e o conservam na linha criadora certa.”[2]

Fazendo um comparativo com a disciplina de metodologia científica podemos extrair desse ensinamento que, o aluno de posse do tema principal de sua dissertação deverá dividi-la em unidades, e destas unidades dividi-las em unidades menores, neste caso, em capítulos, itens e subitens de seu trabalho.

A subdivisão das unidades e o caminho a ser percorrido

“Não decomponham uma peça mais do que o necessário, não usem detalhes como guia. Criem um canal, delineado por divisões amplas, que tenham sido minuciosamente elaboradas e preenchidas até o último detalhe.”[3]

A divisão da peça, e no nosso caso, a dissertação, deverá ser feita em principais episódios orgânicos; com suas unidades maiores, dentro dessas unidades separar o conteúdo essencial. Cada unidade subdivide-se em unidades médias e pequenas. Mais uma vez o personagem adverte para o perigo de se dividir em unidades desnecessárias, capítulos e assuntos que irão tirar o aluno do objetivo principal do trabalho.

A busca pelo o objetivo

“O erro cometido pela maioria dos atores é o de pensar no resultado, em vez de apenas na ação que o deve preparar. Evitando a ação e visando diretamente ao resultado, obtemos um produto forçado que só pode levar a canastronice.”

Nesta passagem em que o autor chama a atenção para o risco de o aluno focar somente no resultado, e que ocasionará num produto forçado, podemos adaptá-lo para os exemplos de alunos que realizam seu trabalho já com um resultado de sua pesquisa pré-concebida ideologicamente antes mesmo de realizá-las. Por certo, qualquer pesquisa que faça, o levará num resultado fabricado e forçado, desmerecendo qualquer crédito científico neste trabalho.

Na questão dos objetivos o autor nos ensina a importância de identificá-los, sabendo eliminar quando são desnecessários ou inúteis. Da mesma forma devemos identificar os temas e assuntos principais que serão abordados numa dissertação.

“Achamos em cena inúmeros objetivos e nem todos são necessários ou bons. Muitos são até prejudiciais. O ator deve aprender a distinguir a qualidade, a evitar o inútil e selecionar objetivos essencialmente certos.”[4]

Num diálogo do personagem diretor com seu aluno, o autor demonstra que o objetivo deve ser interessante para o ator, caso o contrário não será interessante para mais ninguém. Igualmente o tema a ser trabalhado pelo aluno, a pesquisa, dissertação deverá ser mais interessante para quem o faz, e não para os professores, banca ou quiçá uma futura publicação, pois se não for interessante para quem o produz, logicamente não obterá um bom resultado e outros não se interessarão.

“- Mas um objetivo físico será...interessante?

- Interessante para quem?

- Para o público.

- Esqueça o público. Pense em você mesmo – se você estiver interessado, o público o seguirá.” [5]

Nomear um objetivo

Neste momento é explicado como extrair um objetivo de uma unidade de trabalho, o autor narra que o método é simples, consistindo em descobrir o nome mais adequado para a unidade, ou seja, um nome que caracterize a sua essência interior.

“O nome certo, que cristaliza a essência de uma unidade, descobre o seu objetivo fundamental”[6]

“Cada objetivo deve trazer dentro de si a semente da ação”.[7]

Transpondo para a metodologia científica, o método também se aplica na escolha do tema e nomeação dos capítulos e itens a serem abordados.

Capítulo VIII - Fé e sentimento da verdade

O autor nos remete a dois tipos de verdade e sentimento de crença, o primeiro é criado automaticamente e no plano dos fatos reais e o segundo é o tipo cênico, que é igualmente verdadeiro, mas tem origem no plano da ficção imaginativa e artística. Nesse sentido, é feito uma distinção do senso da verdade e o sentimento de crença.

Trazendo para o plano da pesquisa científica, tentarei conectá-la aos trabalhos que não retratem a realidade dos fatos estudados, isto é, ao estudar um determinado fenômeno o aluno deveria se afastar do objeto de estudo de modo que o retrate de maneira mais realista possível, para somente depois incrementar com os propósitos e propostas iniciais, que seria justamente a tese defendida, os quais o autor chamaria nas artes cênicas de invento de imaginação.

“A verdade em cena é tudo aquilo em que podemos crer com sinceridade, tanto em nós mesmo como em nossos colegas”[8]

Cortem 90%

No texto também aprendemos que não se deve expor demasiadamente a verdade a ponto de parecer falsa. Neste sentido, quando um ator exagera na transposição da realidade sua atuação fica forçada. Do mesmo modo, quando um aluno extrapola na descrição dos fatos, quando se utiliza de sentimentos pessoais na exposição do tema torna-o falso, contaminado por paixões pessoais ao caso estudado. Daí a expressão utilizada pelo autor, cortem 90%, que explicita a necessidade de se retirar 90% da emoção do ator/aluno na exposição do tema.

Outra questão interessante apontada pelo autor é quanto ao papel do diretor, quando ele diz: “...um crítico implicante pode deixar maluco um ator e reduzi-lo à impotência,”[9] neste momento do livro o personagem do diretor começou a criticar a atuação dos alunos de maneira tão veemente, que os alunos não conseguiam sequer se mexer direito.

Ousarei em fazer um comparativo, em nosso caso, com os orientadores dos mestrandos, quando é orientação é extremamente criteriosa e detalhista que não permite que o aluno desenvolva seu trabalho, aniquilando-o de qualquer produção criativa.

“O que devem cultivar é um senso crítico sensato, calmo, ponderado e compreensivo, que é o melhor amigo do ator. Esse crítico não os atormentará por ninharias, mas ficará de olho vivo na substancia do trabalho de vocês.”[10]

Um senso de medida

O autor nos ensina que para que uma ação seja válida, deve-se ter unidades coerentes e continuidade lógica. Neste ponto, tal lição se encaixa perfeitamente ao caso da metodologia científica, pois ao dividir o tema principal em capítulos, itens e subitens o aluno deverá percorrer um caminho lógico e coerente para que seu trabalho tenha sentido.

“Como é impossível controlar o todo de uma só vez, temos de fragmentá-lo e de absorver cada porção separadamente. Para atingir a verdade essencial de cada pedacinho e poder acreditar nela, temos de usar o mesmo processo que utilizamos na escolha das nossas unidades e objetivos.”[11]

Repetição das ações físicas.

Para um ator a repetição das ações físicas é fundamental no processo de memorização da cena. O treinamento e o ensaio orientarão o ator no momento da atuação, para que ele não erre ou se perca na cena. Transpondo à metodologia, a pesquisa e o incessante estudo no tema escolhido igualmente orientarão e nortearão o aluno para no projeto de dissertação.

“Se não estiver habituado a atuar para si mesmo fora de cena, pelo menos restrinja seus pensamentos ao que a pessoa que você está interpretando faria se fosse colocada em circunstâncias semelhantes. Isto o ajudará a conservar-se dentro do papel.”[12]

Método de afastar-se do sentimento, para não levá-lo ao exagero.

Retorna-se o tema do sentimento do ator e o risco de ser utilizado de forma exacerbada tornando a cena num ato falso e forçado. O ator deve se afastar ao máximo da emoção, principalmente quando o ato cênico tratar de questões que naturalmente envolvam algum tipo de sentimento. Agindo assim, as emoções se somariam e ocasionariam numa cena indesejada pelo público e crítica.

“Abortando assim a emoção, evita-se qualquer violência, e o resultado é natural, intuitivo e completo.”[13]

“Cheguem à parte trágica do papel sem estremeções dos nervos, sem sufocações nem violências, e, sobretudo, não o façam de repente. Encaminhem-se para ela de forma gradual e logicamente, por meio da execução correta de sua seqüência de ações físicas e acreditando nessas ações.”[14]

Finalizando o autor nos enriquece com a contribuição de entendermos que através da utilização de métodos aplicados na produção de outros saberes, por vezes, em muito se assemelham quanto a realização do todo. Embora, o artigo num primeiro olhar esteja direcionado a uma produção artístico-teatral, assemelha-se naquilo que pode resultar em um caminhar para consecução de trabalhos científicos-acadêmicos, isso porque, através do estudo, análise e crítica dos fragmentos apresentados na peça teatral, também podemos vislumbrar uma realização de uma pesquisa com vista a elaboração de teses acadêmicas.

Enfim, percebe-se, portanto, que os saberes se comunicam de forma interdisciplinar, embora, muitas vezes, possam ser apresentados de maneira quase que “camufladas”, mas que na verdade, pertencem ao ser humano como maneira de produção do conhecimento.


[2] STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do Ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. 26ª edição. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2009. Pág. 151

[3] Ob.cit., p. 153

[4] Ob.cit., p. 156

[5] Ob.cit., p. 158

[6] Ob.cit., p. 159

[7] Ob.cit., p.161

[8] Ob.cit., p.169

[9] Ob.cit., p.172

[10] Ob.cit., p. 172

[11] Ob.cit., p. 180

[12] Ob.cit., p. 182

[13] Ob.cit., p. 188

[14] Ob.cit., p. 189